A cidade que se despediu do rio para não se afogar na lama

A cidade que se despediu do  rio para não se afogar na lama

Há momentos em que a história de uma cidade se escreve com a pena da renúncia. E Itaúna, ao se despedir do curso natural do São João, não o fez por desdém, mas por urgência. Fez-se o adeus necessário à beira do rio para que o futuro não naufragasse na lama. É sobre esse gesto profundo — de perda e escolha — que versa este quinto capítulo da memória da Barragem do Benfica.

Com base nos registros emocionantes de Guaracy de Castro Nogueira, sigo na missão de reinterpretar — com palavras minhas, mas com alma herdada — os episódios que compõem o sacrifício silencioso de uma comunidade inteira em nome do bem comum. São fragmentos de uma dor submersa que ainda pulsa sob as águas do reservatório. E são também testemunhos de grandeza cívica: os nomes que saíram do mapa não saíram da história.

Nos relatos de Guaracy, o povoado de Beira do Rio é retratado com a nitidez de quem andou por suas trilhas, compartilhou sua sombra e ouviu seus murmúrios. Ali, sob as árvores e ao longo das barrancas do São João, famílias inteiras se reuniam em torno de seus pequenos comércios, suas rezas, suas festas. Nas janelas das casas simples, o cotidiano passava devagar — até que um dia foi levado pela correnteza.

Fotografias preservadas pela família, como a da sede da fazenda do Sr. Zezé Lima, mostram a inundação tomando os alicerces e avançando janela adentro. Uma delas, em especial, comove: Guaracy e seu amigo Dui (Augusto Alves de Souza) observando da janela o nível da água subir lentamente até que tudo desaparecesse. O silêncio daquela imagem diz o que as palavras não alcançam. Há também uma cruz solitária, no portão de uma casa já submersa — símbolo da fé que permanece mesmo quando tudo se vai.

Naquele cenário de despedida, não faltaram figuras simbólicas. Uma delas foi o Sr. João Luiz da Fonseca, proprietário de uma casa colonial sólida e silenciosa, que perdeu tudo. A construção — com portas e janelas de madeira de lei, no estilo de época — resistiu com dignidade até a chegada das águas. E ao se retirar da propriedade, João Luiz não protestou. Limitou-se a dizer, com a serenidade dos justos: “Bota sentido onde estão os pregos com os retratos dos velhos na parede, porque tudo meu insinua lugar.” Era o eco de uma geração que sabia sair de cena com a honra intacta.

As famílias que ali viveram — Rosa, Freitas, Alves, Garcia, Magalhães, Batista, Fonseca, Braga, Lima — compõem hoje uma constelação realocada dos mapas daquele lugar, mas viva na memória oral. Algumas mães, como Maria Paula e Carmelina, seguiram vida adentro limpando os dentes de crianças alheias, como parteiras e curandeiras. Outras, como Dona Maria Joana, perderam filhos à força das águas. A casa onde moravam virou um vago ponto nas margens da represa, e a dor virou silêncio.

Não foram poucos os que se viram obrigados a abandonar suas terras, suas histórias, suas árvores plantadas com o tempo. Mas havia ali, naquele gesto coletivo de partida, uma rara compreensão de que certas perdas são sementes. E a cidade, ao se ver diante de sua própria geografia ameaçada pelas cheias, escolheu se reinventar: construiu sobre a ausência, ergueu futuro sobre o luto discreto dos que partiram.

Essas páginas da história itaunense, muitas vezes ignoradas nas celebrações oficiais, revelam uma força moral que antecede a engenharia. Antes do concreto, houve coragem. Antes da barragem, houve um pacto silencioso entre a esperança e o pertencimento. O povo que aceitou desaparecer de um lugar para que o lugar inteiro sobrevivesse mostrou uma maturidade rara: a de não se apegar ao que se tem, quando o que se sonha é maior.

A narrativa da construção da Barragem do Benfica, portanto, não é feita apenas de concreto e cálculo. É feita de ausências. De nomes riscados do mapa. De comunidades que, como Beira do Rio, deixaram de existir nos arquivos geográficos, mas permaneceram vivos nas lembranças de quem precisou partir. A cidade seguiu, mas levava nos ombros o fardo e a força de quem ficou para trás.

Assim seguimos nossa travessia por essa epopeia de água e memória, onde cada palmo de terra submersa revela uma alma coletiva — uma civilização que soube, com coragem, se despedir do rio para não se afogar no próprio destino.