Como escrever um artigo para um debate de alto nível: a aula de Umberto Eco e do Cardeal Carlo Martini.

Como escrever um artigo para um debate de alto nível: a aula de Umberto Eco e do Cardeal Carlo Martini.


Um debate produtivo é guiado pelo respeito à outra parte. Admiração até. Aquele com quem você discorda tem qualidades que você considera tanto, a ponto de você estar disposto a dedicar seu tempo e sua energia em um debate com ele. Sua intenção é produzir conhecimento. Não é a vaidade que move sua crítica, mas sua vontade de submeter seu argumento a uma ideia contrária. Você quer escutar. Em vez de você precisar ressaltar os próprios títulos, você foca com respeito naquilo que o outro tem de bom para oferecer a sua própria visão de mundo. Umberto Eco, um ateu, foi um dos filósofos e escritores mais celebrados internacionalmente. No livro, ‘Em que Crêem os que Não Crêem?’, ele debate com o Cardeal católico Carlo Maria Martini. É uma troca de cartas belíssima. Uma aula de como um ateu e um fervoroso católico conseguem discutir temas que vão desde o aborto a inexistência de uma mulher no papel de sacerdote católica. O escritor brasileiro Rubem Alves escreveu uma analogia, se referindo a relacionamentos, em que ele compara o jogo de tênis com o jogo de frescobol. Lendo Eco e Martini, me lembrei de Rubem Alves. Quando dois indivíduos jogam tênis, o objetivo é mandar a bolinha difícil. A intenção é provocar o erro do outro. O prazer está focado em ganhar, às custas da derrota do outro. O frescobol, por outro lado, só deixa os jogadores animados quando ambos conseguem manter a bola em jogo. A missão é buscar a bola desengonçada que o outro mandou e devolvê-la da maneira mais fácil e respeitosa possível. A vitória do frescobol é quando ambas as partes conseguem permanecer no prazeroso movimento de ir e vir por mais tempo. Sem se envaidecer porque uma cortada impossibilitou o rebater do outro. Escrever para um debate de alto nível é igual.

“Caro Carlo Maria Martini, não me considere desrespeitoso se me dirijo ao senhor chamando-o por seu nome próprio, sem referir-me às vestes que enverga. Entenda-o como um ato de homenagem” – escreve Umberto Eco, ao abrir seu debate com o cardeal. O respeito salta aos olhos. Em especial, porque é acompanhado de contundência nos argumentos. As perguntas nos deixam, como audiência, com a respiração presa. “Há uma noção de esperança (e de responsabilidade em relação ao amanhã) comum a crentes e não-crentes? ”. “Como o teólogo, que ensina o criacionismo clássico, se posiciona frente ao aborto e à engenharia genética moderna? “. “Quais são as razões doutrinais para interditar o sacerdócio às mulheres? ”. Bem no meio da discussão sobre ética, o religioso também passa a fazer perguntas. “O que leva um leigo a professar princípios morais que podem exigir o sacrifício da vida, uma vez que ele não reconhece um Deus pessoal? ”. O resultado do embate são reflexões inspiradoras. Quem lê se sente bem. Quem argumenta sai maior, mais sábio e mais confortável do que entrou. É nítido que ambos contribuíram para a visão de mundo do outro. O poderoso Cardeal chega a, humildemente, admitir dúvida quando diz ser difícil encontrar a noção de esperança comum a crentes e não-crentes. Mas arrisca desenvolver um raciocínio aberto, quando concluiu que ela deve existir. Afinal, “ela se torna visível quando alguém se coloca, gratuitamente, por conta e risco, a serviço de valores elevados, sem nenhuma retribuição aparente”. Chega a provocar emoção a conclusão dos dois debatedores sobre o conceito de vida, quando se questionam a respeito do momento em que se inicia a existência de um ser humano e qual a legitimidade em se considerar um aborto. Eco lidera a concordância mútua de que a ética de qualquer ser-humano civilizado reconhece o direito à vida de seu semelhante – independemente de a pessoa ser religiosa ou não. Na concepção cristã, o príncipe da Igreja complementa: o valor da vida humana reside no fato de sua mera existência ser um chamado a participar do próprio Deus. O respeito a essa vida, desde a sua primeira individuação (quando o encontro dos gametas, masculino e feminino), é uma responsabilidade precisa. A dignidade deste ser não está confiada a uma avaliação benevolente de outra pessoa, ou a um impulso humanitário. Mas a um chamado divino. É algo que não é apenas “eu” ou “meu” ou “dentro de mim”, mas “diante de mim”. 

Um debate de alto nível é dialético. O termo significa uma concepção de mundo segundo o qual sempre existe alguma coisa nova sob o sol. Na Grécia, a dialética era a arte do diálogo. Posteriormente, os alemães Georg Hegel e Friedrich Engels desenvolveram o raciocínio e, em duas linhas distintas, ensinaram que a característica inerente de uma realidade, de um argumento, de uma opinião é o seu contraditório, a sua contradição. A afirmação e sua negação são pares inseparáveis. Sem um contraditório, nenhuma conclusão pode existir. Os conceitos e as certezas estão sempre em transformação. Por isso, por mais discordante que possamos ser de alguém que argumenta coerentemente sobre os assuntos relacionados ao covid19, devemos aprender com os mestres a desenvolver um debate de alto nível. “A dialética intranquiliza os comodistas, assusta os preconceituosos, perturba desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários” – nos ensinou o Prof. Leandro Konder.