Os direitos entendidos corretamente são responsabilidades

Os direitos entendidos corretamente são responsabilidades


A liberdade é uma herança frágil. É por isso que precisamos ensinar, pregar e praticar a democracia – defende Eric Liu, um teórico da democracia e autor do livro “Torne-se América: Sermões Cívicos sobre Amor, Responsabilidade e Democracia”.

Autocratas e demagogos parecem convencidos de que o mundo livre ocidental, a exemplo do Brasil, se sente sem líder. Ainda assim, a esperança democrática requer fé não num homem forte ou num salvador carismático, mas uns nos outros. Como podemos merecer tal fé? Eric Liu defende que estamos num momento de acordar moralmente, do tipo que surge quando certezas antigas colapsam. O escritor defende um conceito chamado “religião cívica”:  um sistema de credos partilhados e práticas coletivas por meio das quais membros de uma comunidade autogovernada escolhem viver como cidadãos. O conceito de “Cidadão” aqui não se refere a papéis ou passaportes, mas a uma concepção mais profunda, abrangente e ética em contribuir para uma comunidade. Segundo a teoria de Liu, a democracia é uma das atividades humanas mais alimentadas pela fé que existe. A democracia só se manifesta quando um número suficiente de pessoas acredita que ela exista. A sua legitimidade não provém de regras constitucionais, mas sim do espírito cívico. A religião cívica de Eric Liu tem a ver com um grupo de pessoas diferentes que, ao dialogar, encontram as suas semelhanças e a sua coletividade.

A ideia central de Liu não é vender um culto. Por extrema que possa parecer a analogia dele. A ideia dele não exige que se renuncie a outras crenças. Apenas convoca que todos estejam presentes como cidadãos. Ele propõe um “Sábado Cívico” e é parecido com uma reunião de fé. Ele faz círculos para organizar comícios, registar eleitores, aderir a novos clubes e fazer novos amigos. Segundo Liu, daí emerge uma percepção de que os sem-abrigo, a violência das armas, o trânsito horrível e as “fake news”, entre outras coisas, não são problemas de outras pessoas, mas são o conjunto dos nossos próprios hábitos e omissões. O nosso comportamento transforma a sociedade. Nunca nos pedem para refletir sobre a nossa cidadania. Muitos de nós nunca somos convidados a fazer mais ou a ser mais, e muitos de nós nem imaginam como desejamos esse convite.

A tese se baseia em duas razões para mostrar sua urgência. Uma é para contrariar a cultura de hiperindividualismo. Cada mensagem que recebemos pelas redes sociais diz-nos que estamos sozinhos, somos um agente livre, livre para gerir as nossas marcas, livre para viver debaixo da ponte, livre para ter um trabalho extra, livre para morrer sozinho sem seguro. O mercado liberal diz-nos que somos mestres e não devemos nada a ninguém, mas depois pretende nos posicionar no horrível isolamento do consumismo. Contudo, o que nos torna realmente livres é a ligação aos outros no apoio e obrigação mútuos, resolver as coisas da melhor forma nos nossos bairros e cidades, como se os nossos destinos estivessem ligados - porque estão - como se não pudéssemos separar-nos uns dos outros, porque, no final, não podemos. Juntarmo-nos desta forma liberta-nos. Revela que somos iguais na dignidade. Relembra-nos que os direitos vêm com responsabilidades. Relembra-nos, de fato, que os direitos entendidos corretamente são responsabilidades.

A segunda razão. Hoje falamos de política de identidade como se fosse algo novo, mas não é. Toda a política é de identidade, uma luta interminável para definir quem pertence realmente. Em vez de mitos tóxicos de sangue e solo que marcam alguns como eternos intrusos, a tese de Eric Liu oferece a todos um caminho de pertença baseado apenas numa crença universal de contribuição, de participação, de inclusão. O “nós” são aqueles que querem servir, fazer voluntariado, votar, ouvir, aprender, sentir empatia, discutir melhor, fazer circular o poder em vez de o acumular. O “eles” são aqueles que não o querem fazer. Podemos julgá-los severamente, mas não é necessário, porque, em qualquer altura, um deles pode tornar-se um de nós simplesmente escolhendo viver como um cidadão.

Apenas essa ideia, contudo, não é o suficiente para solucionar as desigualdades extremas do nosso tempo. É necessário poder para isso. Mas o poder sem caráter é uma cura pior que a doença. Só esta tese não consegue acabar com a corrupção, mas reformas institucionais sem novas normas não vão durar. A cultura fica à montante da lei. O espírito fica à montante da política. A alma fica à montante do estado. Não podemos despoluir a nossa política se apenas limparmos a jusante. Temos de chegar à fonte. A fonte são os nossos valores e no que toca a valores, o conselho é simples: tenham alguns. Coloquem-nos em prática, e façam-no na companhia de outros.

Aqueles que acreditam na democracia e que ela ainda é possível têm o fardo de o provar. Mas lembrem-se, não é de todo um fardo fazer parte de uma comunidade que nos vê como integralmente humanos, em que temos uma palavra a dizer sobre as coisas que nos afetam e em que não precisamos de ser influentes para sermos respeitados. Isso é uma bênção e está disponível para todos os que acreditam.