Padroeira do Brasil, e dos LGBTs

Padroeira do Brasil,  e dos LGBTs
Patrícia Campos


Como de costume, reforçando a única coisa que sabem fazer bem - criar polêmicas e fake news para tentar chamar a atenção para si e ganhar votos -, a extrema direita itaunense e os denominados conservadores cristãos (para mim, tudo farinha do mesmo saco) se disseram horrorizados e ofendidos pela performance da drag queen Glayan Vogan realizada durante a primeira edição do Gay Day, no dia 1º de junho, na Praça Celi, evento que abriu o mês do Orgulho LGBTQIAPN+, celebrado para chamar a atenção para a luta pelos direitos civis da população LGBTQIAPN+ em todo o mundo.

Na ocasião, Glayan se caracterizou como Nossa Senhora Aparecida, a Padroeira do Brasil e provavelmente a santa que reúne mais devotos no país, incluindo em Itaúna. Portanto gerou polêmica e o show de horrores característico das redes sociais. A apresentação, pasmem, consistiu na drag subindo ao palco formalmente vestida em um traje de gala longo e sem decotes e uma peruca de cabelos longos, cantando a música “Hallelujah”, do Leonard Cohen – que há algum tempo foi incorporada pelos cristãos em suas cerimônias religiosas, como casamentos, e se tornou referência para eles, apesar de ser uma canção pagã que cita partes menos populares da Bíblia, em um questionamento da fé e de Deus o tempo todo -, e, do meio para o fim da apresentação, Glayan veste o manto e a coroa da santa e faz a tradicional pose de Maria com as mãos empossadas.

E tem algo que o corte do vídeo compartilhado pelos divulgadores de fake news e pânico moral não mostrou: ao lado do artista no palco, o tempo todo, estava dependurado um pano preto com a mensagem “Rogai por nós”, uma oração, e um pedido de proteção. Foi isso, somente isso. Além dos gritos ovacionando o artista e a emoção das pessoas presentes, especialmente os devotos de Nossa Senhora Aparecida. É só assistir o vídeo completo, que tem 3 minutos e 44 segundos, para conferir. Mas é grande demais, né, para quem está acostumado com 30 segundos de informações falsas e mastigadas.

Não teve nudez, não teve gente quebrando imagem (como alguns pastores evangélicos já fizeram no passado na televisão), não teve simulação de sexo com a santa, não teve qualquer ato de ataque à fé alheia. Nem se você se esforçar muito vai encontrar qualquer coisa, porque não tem nem uma rebolada ou qualquer remelexo mais ousado para o horror dos puritanos. Não era a Madonna, nem a Anitta, nem a Pabllo Vittar, não se afobem, vocês não vão encontrar nada “escandaloso” e ofensivo à moral e aos bons costumes no vídeo. Voltem para a pornografia que vocês estão acostumados a ver escondido se querem algo picante.

Mas o que vão encontrar facilmente é a Câmara Municipal abrindo uma Comissão Especial para averiguar denúncias relacionadas ao evento, e pessoas recorrendo ao Ministério Público para ocupar com picuinhas o tempo dos servidores estaduais já atribulados – e campanha eleitoral disfarçada, é claro (qualquer coisa pela fidelidade dos eleitores!). Tudo muito típico da mente encruada de gentinha que se acha o centro do mundo.

O centro do mundo e da fé, diga-se de passagem. A fé é só deles, dos conservadores, LGBTQIAPN+ não têm direito a ter devoção, a se manifestar, a pedir proteção da Padroeira do Brasil, a fazer homenagem, porque a santa pertence ao imaginário de um certo grupo de pessoas, e é preciso ser hétero, padrão normativo social e cultural. Todo aquele que se desviar um pouco será queimado na fogueira. Você que não faz parte deste grupo escolhido por Deus vai para o inferno.

A todos com quem conversei sobre o assunto fiz os seguintes questionamentos: “O que há de errado na apresentação?” e “O que você viu lá de tão ofensivo?”. As respostas foram sempre as mesmas, que ali não é lugar de Nossa Senhora, é desrespeito. “Por quê?”, rebati sempre e continuo a perguntar. Por que foi representada por um gay? Por que estava em um evento LGBTQIAPN+? A comunidade LGBTQIAPN+ não tem direito à fé? Por que Nossa Senhora estar relacionada de forma respeitosa aos LGBTQIAPN+ é ofensivo por si só e uma mulher hétero se vestir de Maria em um teatro, não é?

Ninguém tem resposta a partir daí. Sabe por quê? Porque, se tiverem a coragem de responder, terão que admitir que acham desrespeitoso apenas porque ser LGBTQIAPN+ é errado na opinião deles, e tudo que é sacro e santo não pode estar associado a este universo, porque é pecado, condenados estão à danação eterna. E hoje em dia é crime ser homofóbico, fica meio complicado admitir isso e correr o risco de ir para a cadeia. E também não fica nada bem, socialmente falando, admitir que se é preconceituoso. Ainda mais no mês do orgulho. É bem mais fácil se esconder na fé, na ideia de que foi desrespeitado e de que cometeram uma heresia.

Eu só tenho uma notícia para os mesquinhos de coração e donos da fé, a Padroeira é do Brasil, ou seja, de todos os brasileiros, incluindo os LGBTQIAPN+. Não é exclusividade de um grupo e não são vocês que determinam quem pode ou não fazer homenagens e louvores, pedir proteção onde quer que for. Pelo que a gente aprendeu e lê na Bíblia - isso para quem lê tudo, não apenas seleciona o que lhe interessa -, se presente neste tempo, Jesus estaria exatamente ali, na Praça Celi, no Gay Day, entre os excluídos. E acho que Maria também. Mesmo que depois fosse ser crucificado novamente por isso.

É 2024, superem. Ninguém vai voltar para os armários.