Traumas de infância que causam nossas doenças de adulto

O belíssimo estudo da Dra. Nadine Burke Harris

Traumas de infância que causam nossas doenças de adulto


Há muitos problemas de nossa saúde adulta causados por traumas de infância. E transmitidos inconscientemente na maneira que criamos nossos filhos. Nós vivemos em meio a uma população de adultos cujas doenças mais sérias são consequências de traumas de infância causados pela criação que receberam. A boa notícia: é possível que nossas próprias doenças possam ser evitadas, se lidarmos com isso a tempo. De quebra, ainda podemos aprender a evitar o mesmo problema em nossos filhos. O trabalho belíssimo da pediatra norte-americana, Dra. Nadine Burke Harris, nos ensina sobre essa descoberta. Temos a honra de transcrever, explicar e popularizar os achados da estudiosa, explicados por ela mesma em palestras e artigos, ainda infelizmente não publicados em português.

O mundialmente conhecido Centro para Controle e Prevenção de Doenças - CDC [Center for Disease Control and Prevention] e a ONG Kaiser Permanent descobriram um tipo de exposição que aumentou drasticamente o risco de sete das dez principais causas de morte nos Estados Unidos. Em altas doses, ela afeta o desenvolvimento do cérebro, o sistema imunológico, o sistema endócrino e até a forma como o nosso DNA é lido e replicado. Pessoas expostas a doses muito altas têm três vezes mais risco de morrer de doenças cardíacas e de câncer de pulmão e têm uma redução de 20 anos em sua expectativa de vida. E ainda hoje, os médicos não são preparados para exames de rotina e tratamento para ela. Essa exposição não é a um pesticida ou a um químico contido em embalagens: mas a traumas de infância. Não se trata de ir mal em uma prova ou perder uma partida de basquete. Estamos falando de ameaças tão graves e penetrantes que literalmente infiltram-se em nosso corpo e mudam nossa fisiologia: coisas como violência psicológica (a exemplo de gritos, xingamentos ameaças e chantagens), violência física (a exemplo de tapas, chineladas e correadas) e negligência, ou ser criado por pais que sofrem de alguma doença mental ou de dependência química (incluso aqui álcool, cigarro e remédios erradamente consumidos de maneira crônica).

O Estudo de Experiências Adversas na Infância foi conduzido pelo Dr. Vince Felitti na Kaiser, e pelo Dr. Bob Anda no CDC. Juntos, eles perguntaram a 17.500 adultos sobre seus históricos de exposição àquilo que chamaram de “EXPERIÊNCIAS ADVERSAS NA INFÂNCIA” ou EAI. Um conceito que inclui violência física ou emocional; negligência física ou emocional; doenças mentais, dependência química; separação ou divórcio dos pais; ou violência doméstica. Para cada “sim”, o adulto recebia um ponto no seu quadro de EAI. Então, eles correlacionaram as pontuações de EAI e os resultados na saúde. O que eles descobriram foi impressionante. Duas coisas: primeiro, as EAIs são incrivelmente comuns. Sessenta e sete por cento da população tinha pelo menos uma EAI. E 12,6%, uma em cada oito, tinham quatro ou mais EAIs. A segunda coisa que descobriram foi que havia uma relação progressiva entre as EAIs e os resultados na saúde: quanto maior a pontuação de EAI, piores os resultados na saúde. Para uma pessoa com uma pontuação de EAI de quatro ou mais, o risco relativo de doença obstrutiva crônica dos pulmões era 2,5 vezes maior que o de alguém com uma pontuação zero de EAI. Para hepatite, também era 2,5 vezes maior. Para depressão, era 4,5 vezes maior. Para o suicídio, era 12 vezes maior. Uma pessoa com uma pontuação de EAI de sete ou mais tinha três vezes mais risco de morrer de câncer de pulmão e 3,5 vezes mais risco de isquemia cardíaca.

Há razões neurológicas pelas quais pessoas expostas a altas doses de adversidade são mais propensas a apresentarem hábitos pessoais de alto risco, e é importante saber isso. Hoje entendemos mais do que nunca como a exposição precoce às adversidades, durante a infância, afeta o desenvolvimento do cérebro e do corpo dos pequenos. Ela afeta áreas como o Núcleo Accumbens, o centro de prazer e de recompensa do cérebro. É exatamente a região envolvida no processo de dependência química. Ele inibe o córtex pré-frontal, necessário para o controle de impulso, uma região crucial para o aprendizado. E, em ressonâncias magnéticas, vemos mudanças significativas na Amígdala – a parte do cérebro responsável pela reação ao medo. Ocorre, entretanto, que mesmo se o adulto não adotar os hábitos de alto risco, ainda será mais propenso a desenvolver doenças cardíacas ou câncer. O motivo tem a ver com o eixo hipotálamo-pituitário-adrenal: o sistema de reação ao estresse do corpo e do cérebro, que comanda nossa reação de “luta ou fuga”. Como ele funciona? Bem, imagine que você está caminhando em uma floresta e avista um urso. Imediatamente, seu hipotálamo envia um sinal à sua glândula pituitária, que envia um sinal à sua glândula adrenal que diz: “Liberar hormônios do estresse! Adrenalina! Cortisol!” Então, seu coração começa a acelerar, suas pupilas se dilatam, suas vias aéreas se expandem e você fica pronto para lutar com o urso ou para correr dele. E isso é maravilhoso, se você estiver numa floresta e avistar um urso. O problema, no entanto, é o que acontece quando o urso aparece toda noite na sua casa e esse sistema é ativado repetidas vezes, deixando de ser adaptável (ou de salvar a vida) para ser mal adaptado ou prejudicial à saúde. As crianças são especialmente sensíveis a essa ativação repetitiva por estresse, porque seu cérebro e corpo ainda estão se desenvolvendo. Altas doses de adversidade não apenas afetam a estrutura e as funções cerebrais, mas também o sistema imunológico em desenvolvimento, o sistema endócrino em desenvolvimento e até a forma como nosso DNA é lido e replicado. 

Dra. Nadine Burke Harris registrou e voz alta a conclusão dela: “começo a acreditar que não damos importância a esse problema porque ele de fato se aplica a nós. Preferimos ficar doentes. [Mas], isso é tratável. Acredito que nós somos a mudança”.